Encontrei hoje muito cedo (para mim), o meu vizinho Manuel do Freixo.
Vinha pela estrada poeirente, de enxada ao ombro, corpo vergado, mais pela tristeza que pelo cançasso. Parei e saí do carro para o cumprimentar.
-Então sô Manel, que tal a vida ?
-Cá se vai vizinho (e nem mais uma palavra).
Cogitei com os meus botões; será que o sô Manel está doente, ou com algum problema a afligi-lo?
-Isso não me parece lá muito bem sô Manel, parece-me que você vai meio aborrecido...
-Na senhor... coisas da vida...
-Mas está alguem doente?
-Na senhor, felizmente cá se vai andando da forma que Deus quer...
Mudei de assunto e perguntei-lhe pela agricultura. Que lá ía tudo da forma que Deus manda o tempo, que se não piorasse, assim estaria muito bem. O sô Manel do Freixo, é uma pessoa muito faladora e sempre com um sorriso franco e enorme a bailar-lhe nos lábios e nos olhos. Desconfio, pelos olhos claros e um certo ar, que será ainda descendente de algum militar das tropas de Massena que premaneceram acantonadas por estas bandas, no tempo das últimas invasões francesas. Talvez trineto de alguma moçoila trigueira e de um desertor do exército francês que no meio da trapalhada da retirada, se tenha esquecido de voltar às fileiras e de quem as fileiras se tenham esquecido.
Na verdade, incomodava-me o recolhimento a que o meu vizinho e amigo, Manuel do Freixo se estava a remeter e não o dispensei da conversa sem voltar a insistir que o achava estranho, muito diferente daquilo a que estava habituado a reconhecer nele.
Depois de mais uns minutos de conversa, o meu amigo Manuel lá começou a desenovelar o problema que o afligia.
- Sabe vizinho?! É que o meu compadre, cada vez que vem cá a casa, atenta-me o juízo, a mim e à mulher, para irmos passar uns dias à casa dele em Lisboa. Ê tenho-lhe dito sempre que nã senhor que tenho aqui munto que fazer na agricultura e que tenho os animais que precisam de ser tratados todos os dias e amais... o que é que vou fazer lá pra casa dele?
Mas tanto ele como a mulher, estão sempre a insistir ca gente pra irmos, pra irmos ver aquilo e as ruas e assim. Tanto insistiram que gente acabámos por pedir a uma vizinha para nos tratar da bicharada e lá fomos, para passar uma semana na casa deles.
-Então ó sô Manel, mas também faz bem mudar de ares e ver coisas diferentes...
-Pois faz vizinho, mas olhe; primeiro, fui-me meter dentro de um andar com gente por cima e por baixo, depois, como aquilo do elevador me faz munta confusão (à minha não faz confusão nenhuma, quela pela-se para andar para cima e para baixo dentro daquilo - olhe caté para ir pró carro, vão no elevador) logo no primeiro dia sobi pelas escadas e ás tantas já não sabia onde estava, nem dava com a saída, disse mal da minha vida. Depois lá apareceu uma mulher que é a porteira, toda cheia de maus modos a perguntar-me o que é que andava ali a fazer. Olhe vizinho, já tava tão xateado que só me apeteceu manda-la aquela parte...
E mais, à nôte, quando já távamos deitados, comecei a ouvir o barulho de água a correr, pensei que alguém tivesse deixado uma torneira aberta e levantei-me, fui ver à casa de banho, nada, fui à cozinha, nada, voltei-me a deitar e a água sempre a correr. Levantei-me outra vez e fui batar à porta do quarto dos mês compadres, quando o compadre me apareceu disse-lhe, olhe que vocemecê tem uma torneira da casa de banho aberta quê tou a ouvir a água a correr. Respondeu-me que não me preocupasse, que era a vizinha de cima a tomar banho.
Diga-me lá vizinho... então a vizinha da outra casa está a tomar banho e a gente ouve como se fosse ali ao pé de nós?
-Pois, é assim em muitos casos sô Manel, nos prédios isso é frequente acontecer.
-Mas ainda o pior, sabe, foi no dia seguinte... eles têm o habito de salevantar pró tarde e eu, alevanto-me sempre cedo, e assim que acordo tenho de me levantar, ir á casa de banho, comer e saír. Assim que me levantei comecei a pensar... quando abrir a torneira da água, vou acordar a casa toda... olhe, até mijei encolhido para não fazer barulho. Depois disse à minha; não vou ficar mais tempo em casa dos compadres, tu se quiseres fica, mas eu vou prá nossa casa, lá é queu me sinto bem. A minha desatou logo num pranto, que ía parecer mal, o que é que os compadres íam dizer, que íam levar a mal concerteza. Olhe vizinho, com tanto pranto e tanta confusão, vesti-me, desci as escadas e vim para a rua, para apanhar ar. Pus-me a andar por ali fora para me distrair e a páginas tantas já não sabia onde é que estava, para cada lado que me virava parecia-me que era tudo igual. Agora é que isto está bonito, pensei cá para mim, como é que vou dar outra vez com a casa dos compadres? Depois lembrei-me de entrar num café e perguntar se alguém conhecia o meu compadre pelo nome. Olhe, aquilo pareciam todos uma vara de porcos a olhar de nariz no ar, nem que sim, nem que não, olhavam para mim como um boi a olhar para um palácio.
Andei naqueles preparos mais de três horas, metia por uma rua, depois por outra, depois por outra e nada de dar com a casa dos mês compadres. Já estava a pensar chamar um carro de praça para me trazer prá minha casa quando apareceram os meus compadres e a minha, todos muito aflitos, a perguntar dondé queu me tinha metido, o que é que andava a fazer ali e sei lá mais o quê. Olhe vizinho, virei-me para eles e só lhes disse; ou vão-me levar já á minha casa, ou então apanho um carro de praça e vou sózinho.
Vamos lá a ter calma, disse o meu compadre. Vamos para casa que está na hora do almoço e depois isso logo se resolve. E lá fomos, almoçamos e depois os compadres levaram-nos a dar um passeio pela Capital, andámos a ver uns largos grandes com umas estátuas de reis e uns jardins também muito grandes e bonitos, até quase à hora do jantar. O problema, foi depois, quando voltámos a casa e ele enfiou o carro num buraco por baixo do prédio e para sair dali, teve de ser outra vez de elevador. Olhe vizinho, deu-se-me um aperto no peito e uma zoeira na cabeça, queu voltei-me prós compadres e disse-lhes, vocês desculpem mas eu não aguento viver aqui mais tempo, tenho de voltar para a minha terra e para a minha casa, para os meus animais e para a minha horta e conversar com os meus amigos, isto aqui não é para mim.
E pronto, depois de jantar, vieram trazer-nos a casa, contra a vontade da minha, mas ê não aguentava estar lá nem mais um minuto.
Ri-me, mas compreendi a angústia do meu amigo Manel do Freixo, um homem que nasceu no monte e tem passado a vida toda na completa liberdade e harmonia com a natureza e os elementos.
-Vá sô Manel, isso agora já tudo passou, já não vale a pena andar aborrecido, vai ver que os seus compadres perceberam que a cidade é para uns e o campo para outros.
-Pois é vizinho... só que a minha ainda anda de trombas...
-Isso passa-lhe, vai ver...
-Que remédio senão passar-lhe... a mim, é que não voltam a apanhar lá por Lisboa!