Há muitos anos conheci em Sesimbra, um Homem e um barco.
Do Homem, esqueci o nome pelo qual era conhecido. Do barco, recordo-me ainda do nome. Era "O Vento".
O Homem tinha já passado os 90 anos de idade. Baixo, seco, ágil, cabelos brancos, olhar vivo, e um interesse sem tamanho, por tudo o que o rodeava. Vivia dentro do seu barco, que é como quem diz; vivia dentro do vento.
Estabelecemos laços de amizade, eu, o Homem e o Vento.
Um dia, contou-me que aquele barco era o culminar do sonho de uma vida. Desenhara-o e construíra-o num estaleiro perto de Vila Nova de Mil Fontes. O casco, todo em madeira, possuía linhas esguias e harmoniosas, a cabine era baixa e exígua, sem mais comodidades que as suficientes para lhe albergar o corpo franzino.
O Homem, contou-me que construíra "O Vento" com um propósito final... o de ser a sua última morada. Tinha decidido que quando sentisse chegar o final, sairia n'O Vento, oceano dentro e afundar-se-iam juntos.
Antes de me fazer esta confidência, olhou-me fixamente nos olhos e pediu-me que guardasse o segredo que iria confiar-me, porque a família não conhecia o seu paradeiro, e sabia que se fosse encontrado, seria impedido de realizar o seu sonho.
Lembro-me de ter passado uns dias e umas noites inquieto, sem saber ao certo que decisão tomar. Se por um lado aprovava e apoiava a decisão do Homem, por outro, a consciência alertava-me para a aflição em que os filhos e restante família andariam, por não saberem dele.
Entretanto, durante os últimos dias que ainda estive de férias, acompanhei o Homem em pequenas viagens ao longo da costa.
"O Vento" era um barco lindo, ligeiro, facílimo de manobrar, uma espécie de "escuna" em ponto pequeno.
O Homem tinha criado um sistema inédito que lhe permitia, através de um conjunto de roldanas, içar-se ao topo do mastro, sentado numa pequena prancha idêntica ao banco de um baloiço de crianças, e dali, usando cordas, manobrar a direcção do barco e a posição das velas.
Era impressionante assistir à satisfação do Homem, quando içado no topo do mastro, concentrado na direcção do vento, olhos postos no horizonte, conduzindo o seu sonho, cortando vagas, virando de bordo, bolinando e arribando, como um cavaleiro cruzado, adestrando a sua montada, preparando-se para a derradeira batalha.
Dois dias antes de terminar as férias, apareceu em Sesimbra, um fotógrafo e um jornalista do "Correio da Manhã". Alguém os tinha alertado para a presença daquele Homem e daquele barco, que era manobrado de uma forma estranha.
Na sua simplicidade e inocência, o Homem recebeu-os a bordo e concedeu-lhes a entrevista que lhe pediram, demonstrando a forma de manejo que concebera. Esqueceu-se no entanto que o jornal chegava a muitos sítios, inclusive... a Vila Nova de Mil Fontes, onde a família do Homem residia e o procurava.
Quando voltei a Sesimbra, soube que a família do Homem o encontrou e o recolheu.
A "O Vento" vim a encontra-lo alguns anos depois, na doca de Belém, em cima da muralha, assente numa armação de madeira, parado.
O Homem, não existe já, certamente. Talvez os seus ossos repousem, num qualquer cemitério da costa alentejana.
Mas os sonhos e o vento permanecem!
quinta-feira, 11 de agosto de 2011
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6 comentários:
e o Vento ficou!
e o Homem não voltou!
mas dentro da esfera do ser
ficou o teu sonho de os conhecer
e com eles conviver!!...
Obrigada pela história
que nos fica na memória...
(pois, é...ainda tive que por aqui vir!...achei que o vento ainda partia e eu não o sentia!) :)
Agora é que vou
tem bons dias de solinho
e que gire a cor no teu ninho
com vento que traga mto carinho!
A girândola do vento e a girândola da vida... é isso minha amiga Bailarina... a vida precisa do vento, para encher a vela que a impulsiona, eo vento precisa da vida. Se não, que fazia o vento, se não houvesse vida?!
;)))
Que história bonita, adorei.
Mas tenho uma certa pena que o Homem não tivesse realizado o seu sonho, de acabar no oceano, junto com o Vento. Compreendo a preocupação da família, mas amar é também respeitar os desejos de quem se ama, mesmo que nos custe. Ainda para mais, quando a pessoa em questão já atingiu tal idade...
É verdade o que dizes Cristina.
E já que a morte, tal como imaginamos que seja, é um corte, uma rotura completa com aquilo que conhecemos, devia ser dado a todos a possibilidade de passar essa etape da vida, da forma como gostaria que decorresse.
Bartolomeu! Como gostei de ler este teu relato!
Abraço forte.
Obrigado pelo (ao) abraço, Catarina!
;)
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