quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

O Construtor de Estórias

Gostava de ser um construtor de estórias.
Na aldeia da Beira Alta, no sopé-norte da Serra da Estrela, onde em criança passava temporadas de férias, conheci muitos contadores de estórias. Os anos de vida que levavam e os acontecimentos que as preenchiam, forneciam-lhes matéria-prima inesgotável para, "cereja-a-cereja", durante as quentes tardes de Verão, até que a fresca brisa do fim de dia lhes permitisse voltar aos campos para os últimos trabalhos, fossem desfiando um rosário de estórias de vida. Vidas duras, sofridas. Vidas pobres de haveres mas ricas de saberes e de quereres.
Lembro-me especialmente de um habitante  da aldeia; o Zé Dias.
Homem solteiro, alegre, maroto e dançarino.
Era o dono de uma das tabernas da aldeia e dono da única bicicleta do povoado.
O Zé Dias, era uma "figura". Fazia somente o que lhe apetecia. Não trabalhava no campo e só abria o estabelecimento ao fim do dia, na hora em que os homens regressavam do campo e entravam para beber vinho e conversar. Ao final da tarde, antes da hora de abertura da tasca, lá aparecia o Zé Dias, de mãos nos bolsos, sorriso sempre aberto, olhos azuis muito vivos, apesar da idade já avançadota. Logo que se acercava dos que já estavam, era instigado a contar uma das suas estórias. E o Zé Dias tinha-as fantásticas. Desde os bailaricos a que ia sem falhar, nas aldeias em redor e noutras mais afastadas, até aos encontros com lobos, durante a noite, pelos caminhos de regresso, aos quais se "safava" sempre "por uma unha negra" e sempre, usando um expediente que, segundo a voz popular, não lembraria, nem ao diabo.
O Zé Dias, era um verdadeiro "construtor de estórias".
Lembro-me de o ter ouvido contar que certa noite, quando regressava de um bailarico numa aldeia a mais de duas dezenas de quilómetros de distância, quando atravessava uma mata, ter visto aparecer-lhe à frente uma mulher toda vestida de branco. Perdeu-se o construtor de estórias em pormenores físicos daquele ser feminino que ali se materializara: que era alta, jovem, bonita, cabelos longos até à cinta, seios volumosos, ancas largas, olhos brilhantes, etc, etc.
Quem o escutava, não ousava proferir uma palavra, reduzindo-se ao espanto, sem despregar os olhos daquela figura irrequieta e quase hipnótica, seguindo com a máxima atenção o desenrolar do relato.
Terminada a descrição do ser que por magia lhe apareceu, o Zé Dias achou por bem suspender a estória que afirmara ser verdadeira.
Era manha do artista.
Usava-a para obter dos ouvintes, rogos intensos para que continuasse, para que contasse o que se passou a seguir.
Então o Zé Dias, depois de se deleitar com os pedidos recebidos, fingindo alguma contrariedade e resignação, volta a pegar no "fio à meada" e sabendo que "tem na mão" os ouvintes, dá asas à imaginação e, com uma mestria inexcedível, entrega-se de corpo e alma à construção de um edifício de uma grandeza e uma arquitectura deslumbrantes.
Conta que a mulher não fala, que só se sorri para ele, mas que ele, sem saber porque artes, consegue ouvir dentro da cabeça, as palavras que a mulher não diz.
Todos exclamam Ahhhhh!!!
Que é verdade, que tal nunca lhe tinha sucedido, nem ouvira contar a ninguém!
Depois, que a mulher o foi acompanhando, pelo carreiro fora, entre os pinheiros, mas que a dada altura, notou que ela não caminhava, que nem sequer tocava os pés no chão.
De novo os ouvintes se espantaram. E de novo o Zé Dias afirmou que era a pura das verdades.
Em seguida, ao chegarem junto a um ribeiro que teria de atravessar, a mulher chegou-se mais junto ao Zé Dias e colocando-lhe o braço em volta do pescoço, abraçou-o e beijou-o.
Os homens que ouviam a estória com a máxima atenção, lamberam os beiços sem notar que o faziam, as mulheres mexeram-se e olharam umas para as outras desconfiadas.
O Zé Dias, fingindo não dar pelas reacções dos circunspectos ouvintes, continua: que durante aquele longo beijo, começou a sentir que estava a ficar sem peso, que os pés se estavam a levantar da terra, que se começou a sentir meio zonzo; nessa altura, um dos ouvintes mais atrevidote, ou mais nervoso, atirou-lhe entre-dentes: isso não seria do vinho ó Zé Dias? Os outros reagiram instantâneamente: XIUUUU!!!
O Zé Dias, fingindo não ouvir o palrador continuou, diminuindo o ritmo do discurso e olhando para o vazio, como se estivesse a ver uma imagem que mais ninguém conseguia ver; que nessa altura, sentiu-se ir pelos ares e quando se achava por cima das águas do ribeiro, a mulher, abraçando-o e beijando-o ainda com mais força, entrou com ele pelas águas dentro.
Ui credo, exorcizaram as mulheres, benzendo-se ao mesmo tempo. Os homens, nem uma palavra, ficaram mudos, olhos no chão, imaginando-se talvez eles mesmo a viver aquela situação.
Uns momentos após saborear em pleno, a reacção que provocara naquelas mentes simples e imensamente supersticiosas, o Zé Dias, volta a enfiar as mãos nos bolsos e declara: bem, agora vou abrir a venda que já se faz tarde.
Nessa altura, o tagarela que já havia antes intervido na estória, como que acordando do sono induzido, dá um passo em direcção ao Zé Dias e coçando a cabeça, pergunta-lhe: Olha lá ó Zé; então e não morreste afogado?
O outro, voltando a cabeça, atira-lhe a rir: morri... morri. Deves pensar que sou parvo; quando vi que íamos cair na água, enchi bem o peito de ar e esperei que ela se afogasse. E assim, lá continuou o Zé Dias, rumo à sua taberna, deixando os seus fieis ouvintes a olhar uns para os outros, meio atordoados.

5 comentários:

Rosa dos Ventos disse...

Adorei a tua história...ou por outra, a do Zé Dias! :-))
Bom ano, Bartô, bons olhos te leiam!

Abraço

Cristina Torrão disse...

Bem, de aparições, temos nós tradição... ;)

Bom Ano!

Bartolomeu disse...

Olá minha Amiga Rosa!
Não te via desde o ano passado!
;))
Que tenhas também um excelente ano, pleno de realizações, são os meus votos!
;)

Bartolomeu disse...

Olá minha Amiga Cristina!
;))
Pois é Cristina, as gentes das aldeias são muito dadas a esses fenómenos.
Talvez o isolamento, a simplicidade e alguma ingenuidade, os torne mais aptos a ver aquilo que para ser visto, requer que se possua uma boa dose de credulidade.

Bartolomeu disse...

PS:
Um excelente ano também para ti, Cristina!
Com muitas edições e publicações!