quinta-feira, 11 de agosto de 2011

O Vento

muitos anos conheci em Sesimbra, um Homem e um barco.
Do Homem, esqueci o nome pelo qual era conhecido. Do barco, recordo-me ainda do nome. Era "O Vento".
O Homem tinha já passado os 90 anos de idade. Baixo, seco, ágil, cabelos brancos, olhar vivo, e um interesse sem tamanho, por tudo o que o rodeava. Vivia dentro do seu barco, que é como quem diz; vivia dentro do vento.
Estabelecemos laços de amizade, eu, o Homem e o Vento.
Um dia, contou-me que aquele barco era o culminar do sonho de uma vida. Desenhara-o e construíra-o num estaleiro perto de Vila Nova de Mil Fontes. O casco, todo em madeira, possuía linhas esguias e harmoniosas, a cabine era baixa e exígua, sem mais comodidades que as suficientes para lhe albergar o corpo franzino.
O Homem, contou-me que construíra "O Vento" com um propósito final... o de ser a sua última morada. Tinha decidido que quando sentisse chegar o final, sairia n'O Vento, oceano dentro e afundar-se-iam juntos.
Antes de me fazer esta confidência, olhou-me fixamente nos olhos e pediu-me que guardasse o segredo que iria confiar-me, porque a família não conhecia o seu paradeiro, e sabia que se fosse encontrado, seria impedido de realizar o seu sonho.
Lembro-me de ter passado uns dias e umas noites inquieto, sem saber ao certo que decisão tomar. Se por um lado aprovava e apoiava a decisão do Homem, por outro, a consciência alertava-me para a aflição em que os filhos e restante família andariam, por não saberem dele.
Entretanto, durante os últimos dias que ainda estive de férias, acompanhei o Homem em pequenas viagens ao longo da costa.
"O Vento" era um barco lindo, ligeiro, facílimo de manobrar, uma espécie de "escuna" em ponto pequeno.
O Homem tinha criado um sistema inédito que lhe permitia, através de um conjunto de roldanas, içar-se ao topo do mastro, sentado numa pequena prancha idêntica ao banco de um baloiço de crianças, e dali, usando cordas, manobrar a direcção do barco e a posição das velas.
Era impressionante assistir à satisfação do Homem, quando içado no topo do mastro, concentrado na direcção do vento, olhos postos no horizonte, conduzindo o seu sonho, cortando vagas, virando de bordo, bolinando e arribando, como um cavaleiro cruzado, adestrando a sua montada, preparando-se para a derradeira batalha.
Dois dias antes de terminar as férias, apareceu em Sesimbra, um fotógrafo e um jornalista do "Correio da Manhã". Alguém os tinha alertado para a presença daquele Homem e daquele barco, que era manobrado de uma forma estranha.
Na sua simplicidade e inocência, o Homem recebeu-os a bordo e concedeu-lhes a entrevista que lhe pediram, demonstrando a forma de manejo que concebera. Esqueceu-se no entanto que o jornal chegava a muitos sítios, inclusive... a Vila Nova de Mil Fontes, onde a família do Homem residia e o procurava.
Quando voltei a Sesimbra, soube que a família do Homem o encontrou e o recolheu.
A "O Vento" vim a encontra-lo alguns anos depois, na doca de Belém, em cima da muralha, assente numa armação de madeira, parado.
O Homem, não existe já, certamente. Talvez os seus ossos repousem, num qualquer cemitério da costa alentejana.
Mas os sonhos e o vento permanecem!

6 comentários:

Baila sem peso disse...

e o Vento ficou!
e o Homem não voltou!
mas dentro da esfera do ser
ficou o teu sonho de os conhecer
e com eles conviver!!...

Obrigada pela história
que nos fica na memória...

(pois, é...ainda tive que por aqui vir!...achei que o vento ainda partia e eu não o sentia!) :)

Agora é que vou
tem bons dias de solinho
e que gire a cor no teu ninho
com vento que traga mto carinho!

Bartolomeu disse...

A girândola do vento e a girândola da vida... é isso minha amiga Bailarina... a vida precisa do vento, para encher a vela que a impulsiona, eo vento precisa da vida. Se não, que fazia o vento, se não houvesse vida?!
;)))

Cristina Torrão disse...

Que história bonita, adorei.
Mas tenho uma certa pena que o Homem não tivesse realizado o seu sonho, de acabar no oceano, junto com o Vento. Compreendo a preocupação da família, mas amar é também respeitar os desejos de quem se ama, mesmo que nos custe. Ainda para mais, quando a pessoa em questão já atingiu tal idade...

Bartolomeu disse...

É verdade o que dizes Cristina.
E já que a morte, tal como imaginamos que seja, é um corte, uma rotura completa com aquilo que conhecemos, devia ser dado a todos a possibilidade de passar essa etape da vida, da forma como gostaria que decorresse.

Catarina disse...

Bartolomeu! Como gostei de ler este teu relato!
Abraço forte.

Bartolomeu disse...

Obrigado pelo (ao) abraço, Catarina!
;)