Quando era ainda muito pequeno, lembro-me de um certo dia ter entrado na cozinha lá em casa, e o meu olfacto ter sido invadido por um cheiro forte estranho e extremamente desagradável.
Lembro-me de ter ficado por momentos, estático, no meio da cozinha, tentando identificar aquele odor que agredia os meus sensores olfactivos e me toldava os sentidos, ao ponto de me provocar náusea.
Perguntei a que correspondia aquele cheiro agressivo e agoniante, mesclado de outros que quase conseguia identificar mas que, no meio daquele festival, me pareciam igualmente desagradáveis.
Foi-me respondido que se tratava de favas guisadas com entrecosto, e que fosse lavar as mãos e sentar-me à mesa, porque estava praticamente pronto.
Lembro-me que respondi de imediato; mas eu não gosto disso.
A minha mãe sorriu e carinhosamente respondeu-me; sabes lá se gostas... nunca provaste.
-Não gosto! respondi com determinação - cheira mal!
- Não digas isso, o comer nunca cheira mal, tomara muitos meninos que neste momento estão cheios de fome, ter um prato de favas para o almoço.
- Então a mãe dê as minhas favas a esses meninos...
- Vá, chega de conversa, toca a lavar as mãos e a sentar à mesa.
Contrariado, lá fui cumprir a ordem. No entanto, mentalmente, já havia determinado que não iria sequer provar aquele prato horroroso.
E assim foi. Apesar de todas as negociações gastronómicas - então prova só o entrecosto que está tão bom - e o chouriço - e trinca só uma favinha, para veres que é bom - até às contra-negociações; se não comes ao menos a carninha, não podes ver a televisão nem brincar com os brinquedos... nem comi, nem provei. Para que não ficasse sem refeição, a minha mãe condescendeu em que comesse outro prato mas, na verdade, sentia o estômago tão engulhado que não me achava capaz de comer o melhor pitéu.
Lembrei-me deste episódio, a propósito destas negociações laborais entre governo e sindicatos, as quais começaram pela imposição de mais meia hora diária no período laboral, terminando com a abolição dessa imposição, mas aprovando outras muito mais gravosas para qualquer empregado e que proporcionam ao empregador uma ampla liberdade de despedir o empregado que não lhe agrade, de acordo com o humor com que acordar naquele dia.
É assim, deste modo, com estas medidas, que o governo eleito por maioria democrática para governar o país e fazer respeitar os legítimos direitos dos trabalhadores, cria condições para regenerar a economia do país e encontra incentivos para que os empresários portugueses invistam na produção.
Ora favas!!!
7 comentários:
Excelente alegoria e não menos excelente conclusão.
E cá vamos nós à mercê de todo este processo cujo desenvolvimento ainda vai no adro...e as consequências sociais são imprevisíveis. Neste momento, ainda só se vê a ponta do iceberg.
Meu amigo, um grande abraço.
Olinda
Estão os trabalhadores entregues aos bichos... Ou melhor, às favas!
Olha minha amiga Olinda, face a todas as incoerências e incongruências a que assistimos, começo a acreditar que em lugar dos secretários-gerais dos sindicatos, deveria ter estado o Presidente da Madeira, que pelos vistos, tem de longe mais poder negocial.
Tens razão Cristina, estão os trabalhadores e os bichos!
Porque se os bichos estão convencidos que serão eternamente donos da situação, esquecem-se que tudo conhece um fim. E se esse fim, não chegar por efeito da saturação de quem trabalha e paga os seus impostos e economiza para pagar os erros de gestão dos governos e dos administradores dos bancos, chegará certamente pela exaustão de meios desses mesmos trabalhadores.
Eu diria que, chamar pagamento dos " erros de gestão dos governos e dos administradores dos bancos", ao roubo descarado destes senhores, é benevolência em excesso.
E no meio de tanta chafurdice, obviamente que Jardim pode fazer golpe de rins.
A minha dúvida persiste: será que os portugueses lutarão pela sua dignidade?
Apesar de tudo, tenho de lhes conceder o benefício da dúvida.
Pois...neste caso, não são favas contadas.
Interessada;
A dignidade dos Portugueses, segundo a versão Histórica, emerge normalmente de actos isolados que mais tarde se vêem a classificar de heroicos, mas que no momento em que são praticados, não passam de fugas para a frente.
Desde o Rei D. João II e até ele, nunca os Portugueses planearam os actos que iríam revelar-se dignificantes.
Deve ser uma questão de fado, suponho. Se assim é, não trinaram ainda as primeiras notas de guitarra, que irão dar a entrada para que se cantem os versos.
;)
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