sexta-feira, 22 de junho de 2012

Pensamos que temos tudo, mas não temos nada...

Caminhava pela berma da estrada estreita, deserta. Amparava-se a um pau tosco, encardido. Obesa, quase andrajosa. Parou quando me aproximei e ficou parada a olhar enquanto passei. Parei logo a seguir, fiz marcha atrás, abri o vidro, não precisei de lhe oferecer boleia, passou imediatamente pela frente do carro, dirigindo-se à porta do passageiro.
-Vou só até ali à frente, ao café, sabe onde é?
-Sei; entre.
Entrou com imensa dificuldade, agarrando-se a tudo o que pudesse servir-lhe de travão ao desmoronamento daque corpo enorme. Primeiro de tudo, entrou o pau, a seguir a perna esquerda e com ela metade de um cu que mais parecia a anca de um animal de tracção. A restante perna, o resto do cu e o tranco onde avolumava um par de mamas que se confundia com o prolongamento do proeminente estômago, é que foram a parte mais difícil de entrar.
Quando já me preparava para saír do carro, com a intenção de empurrar aquela massa gelatinosa para o lugar do passageiro, num súbito solavanco, como rolha de garrafa de champanhe que se solta, mas ao contrário, lá entrou a totalidade daquele corpo imenso arfante, balôfo.
Nem lhe ordenei que colocasse o cinto de segurança, imaginei-o insuficiente para abarcar a totalidade do volume.
-É a coluna que me mata, sabe?! Foram muitos anos no duro, de manhã à noite, por esses campos fora, desde muito pequena. Levantava-me como primeiro cantar.
-Com o primeiro cantar? O que é isso?!
-Então, era quando o galo cantava pela primeira vez, sabe que naquele tempo, ha oitenta anos, aqui por estes sítios, ninguém tinha relógio nem despertador. Agente alevantava-se quer fosse de Verão ou de Inverno, com o primeiro cantar do galo; e depois lá íamos por esses caminhos fora até às quintas onde nos davam trabalho, a roer uma côdea de pão pelo caminho. Olhe que foram tempos muito difíceis... nem me quero lembrar, senhor, Jesus, Maria. Mas olhe, tudo se criou,e viveu-se com mais alegria. A gente nada tinha, mas eramos alegres, íamos o caminho todo a cantar e a contar anidotas. E hoje...(calou-se uns instantes) hoje, julgamos que temos muito e ainda temos menos.
-Então acha que esses tempos passados, foram melhores que os actuais?
- Olhe senhor, se hoje é melhor, não lhe posso dizer, aquilo que lhe digo é que já não ha alegria para nada.
Chegámos ao largo em frente ao café, parei o carro e perguntei-lhe se era ali que desejava ficar.
-É sim senhor, respondeu-me, venha beber um cafézinho que pago eu.
-Não senhora, muito obrigado (enquanto esperava que o corpanzil conseguisse mover-se, desta vez para fora do carro).
-Então e uma cerveja? venha daí, ao menos uma cervejinha.
-Agradeço-lhe, minha senhora, mas fica para outra altura, agora está na hora de ir almoçar.
-Então e o que é que tem? Venha lá beber a cerveja...
-Não vai, não vai... mas agradeço à mesma!
-Pronto, você é que sabe, mas olhe que é de boa-vontade.
E lá acabou por conseguir tirar a totalidade do corpo, fechar a porta do carro e agradecer de novo a boleia com um sorriso imenso e radioso.

4 comentários:

Cristina Torrão disse...

Que história interessante! E bem contada.

Mas quando a senhora diz: "a gente nada tinha, mas eramos alegres, íamos o caminho todo a cantar e a contar anidotas", ou: "se hoje é melhor, não lhe posso dizer, aquilo que lhe digo é que já não ha alegria para nada", acho que está, acima de tudo, a lamentar a juventude perdida. Porque "foram tempos muito difíceis... nem me quero lembrar, senhor, Jesus, Maria". Mas ela era jovem e, agora, é velha, talvez a razão de não haver "alegria para nada".

E, daí, quem sabe? É só uma opinião ;)

Bartolomeu disse...

São várias as condicionantes que concorrem para a falta de alegria de viver que hoje em dia, as pessoas, em geral, sentem.
Como sabes, Cristina, eu moro perto de uma aldeia, os meus vizinhos são na sua maioria idosos. Pessoas que passaram uma infância difícil, porque a pobreza das famílias era tão grande, que até lhes faltava o comer, já para não falar no agasalho. Brinquedos, nem sabiam o que era, excepto uma bola feita de trapos velhos e no caso das raparigas, uma boneca, feita de uma meia sem serventia. O resto dos brinquedos, chamava-se imaginação. Talvez por isso, ocupavam o tempo livre em jogos, quando mais crescidos, em bailaricos, em romarias, e um sem-número de outras actividades relacionadas com o campo e os animais.
Este pequeno texto que escrevi, é a transcrição de uma conversa e de uma situação real.
A falta de alegria de que todos se queixam hoje, tem a ver, no meu ponto de vista a um conjunto de factores, que tem mais a ver com a consciência de que tudo aquilo que homens de outros tempos ergueram, com o suor do seu rosto e lhes dava alegria admirar, é hoje destruído, para dar lugar a algo indefinível e incerto, incapaz de acrescentar ou repôr, aquilo que todos perderam.
Algo que não tem nome, que não tem corpo nem côr, constrange as pessoas, retira-lhes o ânimo, empurra-as para uma apatia a que não sabem como resistir, como fazer frente e vencer.
É isto que eu observo e sinto quando converso com os meus vizinhos, enquanto andam nos campos a fazer os seus trabalhos.
Estou convencido, que se não fosse o caso de muitos deles conseguirem ir resistindo naturalmente, apesar das dores do corpo, ao apêlo de abandonar os trabalhos rurais, e continuarem a responder de corpo e alma ao apêlo da terra, semeando, mondando, regando e colhendo... a maioria não passaria já de zoombies.

Cristina Torrão disse...

É bem verdade que, em Portugal, se estão a viver tempos que tiram a alegria a qualquer um. E os mais prejudicados são, normalmente, aqueles que mais trabalharam e se sacrificaram, não há dúvida. Em qualquer idade se pode sentir alegria, desde que haja condições para isso.

Eu apenas me lembrei de casos de pessoas que costumam dizer "no meu tempo é que era; éramos muito mais felizes", pelo simples facto de que eram mais novos e viam a vida com outros olhos.

Paulo Oliveira disse...

Gostei. E tem razão a sra.
Adicione o gostar as mensagens :-)