quarta-feira, 6 de julho de 2011

Os Freixos e o Mundo

Encontrei hoje muito cedo (para mim), o meu vizinho Manuel do Freixo.


Vinha pela estrada poeirente, de enxada ao ombro, corpo vergado, mais pela tristeza que pelo cançasso. Parei e saí do carro para o cumprimentar.


-Então sô Manel, que tal a vida ?


-Cá se vai vizinho (e nem mais uma palavra).


Cogitei com os meus botões; será que o sô Manel está doente, ou com algum problema a afligi-lo?


-Isso não me parece lá muito bem sô Manel, parece-me que você vai meio aborrecido...


-Na senhor... coisas da vida...


-Mas está alguem doente?


-Na senhor, felizmente cá se vai andando da forma que Deus quer...


Mudei de assunto e perguntei-lhe pela agricultura. Que lá ía tudo da forma que Deus manda o tempo, que se não piorasse, assim estaria muito bem. O sô Manel do Freixo, é uma pessoa muito faladora e sempre com um sorriso franco e enorme a bailar-lhe nos lábios e nos olhos. Desconfio, pelos olhos claros e um certo ar, que será ainda descendente de algum militar das tropas de Massena que premaneceram acantonadas por estas bandas, no tempo das últimas invasões francesas. Talvez trineto de alguma moçoila trigueira e de um desertor do exército francês que no meio da trapalhada da retirada, se tenha esquecido de voltar às fileiras e de quem as fileiras se tenham esquecido.


Na verdade, incomodava-me o recolhimento a que o meu vizinho e amigo, Manuel do Freixo se estava a remeter e não o dispensei da conversa sem voltar a insistir que o achava estranho, muito diferente daquilo a que estava habituado a reconhecer nele.


Depois de mais uns minutos de conversa, o meu amigo Manuel lá começou a desenovelar o problema que o afligia.


- Sabe vizinho?! É que o meu compadre, cada vez que vem cá a casa, atenta-me o juízo, a mim e à mulher, para irmos passar uns dias à casa dele em Lisboa. Ê tenho-lhe dito sempre que nã senhor que tenho aqui munto que fazer na agricultura e que tenho os animais que precisam de ser tratados todos os dias e amais... o que é que vou fazer lá pra casa dele?


Mas tanto ele como a mulher, estão sempre a insistir ca gente pra irmos, pra irmos ver aquilo e as ruas e assim. Tanto insistiram que gente acabámos por pedir a uma vizinha para nos tratar da bicharada e lá fomos, para passar uma semana na casa deles.


-Então ó sô Manel, mas também faz bem mudar de ares e ver coisas diferentes...


-Pois faz vizinho, mas olhe; primeiro, fui-me meter dentro de um andar com gente por cima e por baixo, depois, como aquilo do elevador me faz munta confusão (à minha não faz confusão nenhuma, quela pela-se para andar para cima e para baixo dentro daquilo - olhe caté para ir pró carro, vão no elevador) logo no primeiro dia sobi pelas escadas e ás tantas já não sabia onde estava, nem dava com a saída, disse mal da minha vida. Depois lá apareceu uma mulher que é a porteira, toda cheia de maus modos a perguntar-me o que é que andava ali a fazer. Olhe vizinho, já tava tão xateado que só me apeteceu manda-la aquela parte...


E mais, à nôte, quando já távamos deitados, comecei a ouvir o barulho de água a correr, pensei que alguém tivesse deixado uma torneira aberta e levantei-me, fui ver à casa de banho, nada, fui à cozinha, nada, voltei-me a deitar e a água sempre a correr. Levantei-me outra vez e fui batar à porta do quarto dos mês compadres, quando o compadre me apareceu disse-lhe, olhe que vocemecê tem uma torneira da casa de banho aberta quê tou a ouvir a água a correr. Respondeu-me que não me preocupasse, que era a vizinha de cima a tomar banho.


Diga-me lá vizinho... então a vizinha da outra casa está a tomar banho e a gente ouve como se fosse ali ao pé de nós?


-Pois, é assim em muitos casos sô Manel, nos prédios isso é frequente acontecer.


-Mas ainda o pior, sabe, foi no dia seguinte... eles têm o habito de salevantar pró tarde e eu, alevanto-me sempre cedo, e assim que acordo tenho de me levantar, ir á casa de banho, comer e saír. Assim que me levantei comecei a pensar... quando abrir a torneira da água, vou acordar a casa toda... olhe, até mijei encolhido para não fazer barulho. Depois disse à minha; não vou ficar mais tempo em casa dos compadres, tu se quiseres fica, mas eu vou prá nossa casa, lá é queu me sinto bem. A minha desatou logo num pranto, que ía parecer mal, o que é que os compadres íam dizer, que íam levar a mal concerteza. Olhe vizinho, com tanto pranto e tanta confusão, vesti-me, desci as escadas e vim para a rua, para apanhar ar. Pus-me a andar por ali fora para me distrair e a páginas tantas já não sabia onde é que estava, para cada lado que me virava parecia-me que era tudo igual. Agora é que isto está bonito, pensei cá para mim, como é que vou dar outra vez com a casa dos compadres? Depois lembrei-me de entrar num café e perguntar se alguém conhecia o meu compadre pelo nome. Olhe, aquilo pareciam todos uma vara de porcos a olhar de nariz no ar, nem que sim, nem que não, olhavam para mim como um boi a olhar para um palácio.


Andei naqueles preparos mais de três horas, metia por uma rua, depois por outra, depois por outra e nada de dar com a casa dos mês compadres. Já estava a pensar chamar um carro de praça para me trazer prá minha casa quando apareceram os meus compadres e a minha, todos muito aflitos, a perguntar dondé queu me tinha metido, o que é que andava a fazer ali e sei lá mais o quê. Olhe vizinho, virei-me para eles e só lhes disse; ou vão-me levar já á minha casa, ou então apanho um carro de praça e vou sózinho.


Vamos lá a ter calma, disse o meu compadre. Vamos para casa que está na hora do almoço e depois isso logo se resolve. E lá fomos, almoçamos e depois os compadres levaram-nos a dar um passeio pela Capital, andámos a ver uns largos grandes com umas estátuas de reis e uns jardins também muito grandes e bonitos, até quase à hora do jantar. O problema, foi depois, quando voltámos a casa e ele enfiou o carro num buraco por baixo do prédio e para sair dali, teve de ser outra vez de elevador. Olhe vizinho, deu-se-me um aperto no peito e uma zoeira na cabeça, queu voltei-me prós compadres e disse-lhes, vocês desculpem mas eu não aguento viver aqui mais tempo, tenho de voltar para a minha terra e para a minha casa, para os meus animais e para a minha horta e conversar com os meus amigos, isto aqui não é para mim.


E pronto, depois de jantar, vieram trazer-nos a casa, contra a vontade da minha, mas ê não aguentava estar lá nem mais um minuto.


Ri-me, mas compreendi a angústia do meu amigo Manel do Freixo, um homem que nasceu no monte e tem passado a vida toda na completa liberdade e harmonia com a natureza e os elementos.


-Vá sô Manel, isso agora já tudo passou, já não vale a pena andar aborrecido, vai ver que os seus compadres perceberam que a cidade é para uns e o campo para outros.


-Pois é vizinho... só que a minha ainda anda de trombas...


-Isso passa-lhe, vai ver...


-Que remédio senão passar-lhe... a mim, é que não voltam a apanhar lá por Lisboa!

9 comentários:

Cristina Torrão disse...

:)

Fez-me lembrar a minha avó de Trás-os-Montes que, um dia, de visita ao Porto (eu era ainda criança) se virou para mim e perguntou: mas o que é que esta gente toda anda a fazer na rua? Não têm nada para fazer? Que vão lá para a minha terra, que há muita batata para cavar!

Bartolomeu disse...

Ainda hoje, apesar de toda a informação e de toda a facilidade de deslocação, noto uma distância abismal entre a forma como as pessoas que vivem no campo entendem a vida, e as que vivem nas cidades. E ainda entre as pessoas que vivem nas cidades do interior e as que vivem nas capitais.
Aqui, onde moro, ainda se pratica muito a agricultura. Antes da entrada de Portugal para a união europeia, esta zona era uma forte abastecedora dos mercados de Lisboa. Depois, devido aos acordos de importação, as frutas e vegetais passaram a ser importados e os agricultores, devido também á idade avançada da maioria, abandonaram a agricultura em maior extensão. Hoje aqueles que ainda cultivam, fazem-no somente para consumo próprio. Mas são uma maravilha de pessoas, sempre dispostas a partilhar o que produzem com os vizinhos.
;)

Olinda Melo disse...

Olá, Bartolomeu

Já tinha aqui estado mas não deu para ler o texto porque, entretanto, com isto do Verão e das férias, a casa está numa coisa só...Assim, resolvi lê-lo com a devida calma.
Adorei esta escrita assim, à Júlio Dinis,o choque entre o campo e a cidade e todas as alterações e consequências que daí advêm.E fê-lo tão bem, tão bem que até parece que estava a ouvir o Sô Manel. Na verdade, é um autêntico suplício uma pessoa habituada a espaços abertos, ver-se encafuada num caixote que são os apartamentos e todo aquele ritual próprio das cidades totalmente diferente do campo...Nem sempre o progresso é aquela coisa extraordinária que pensamos e cada dia que passa vamos tendo provas disso.

Abraço.

Olinda

Bartolomeu disse...

Olá Olinda
;)
Tenho notado últimamente, que cada vez mais, os casais optam por viver no campo, ou seja, na perifieria das maiores cidades.
Um "fenómeno social" que em minha opinião, é o reflexo da crise e sobretudo da incapacidade adquirida, para fazer face às obrigações financeira assumidas, numa altura em que no nosso país tudo eram facilidades para quem tinha um emprego. Refiro-me a facilidades na obtenção de crédito. A maior fantasia deste século!
Mas, inevitávelmente, cada família, mais cedo ou mais tarde toma consciência do logro em que se deixou cair e, ao sentirem-se falidas, retornam ao local que nos seus inconscientes se encontra gravado como um "porto seguro". O campo, a agricultura, aquilo que ao longo dos milénios tem garantido a subsistência da espécie humana.
No entanto, apesar das evidências, os governos, os políticos, os economistas e sobretudo os banqueiros, continuam a querer iludir-nos que tudo voltará a ser como foi ha poucos anos atrás.
Uma das falácias agora na moda, é o slogan lançado pelo Presidente da Republica «Comprem produtos nacionais».
Acordou tarde o Senhor Presidente, no entanto, rendo-lhe a minha homenágem. Como diz a voz do povo «mais vale tarde que nunca»
Mas não será essa opção que irá salvar a nossa economia, nem sequer a economia das famílias.
Para isso, é necessário que seja criada uma economia comunitária Nacional. É necessário que quem produz, que quem cultiva, saiba que vai ter quem compre aquilo que produzir. Para isso, é necessário que se reduzam as importações daquilo que podemos produzir e é necessário que sejamm criados circuitos que garantam o escoamento das produções, ao preço justo. Desta forma será possível àqueles que vivem com poucos rendimentos, terem acesso aos bens essencias e ainda, àqueles que produzem, poder beneficiar de um lucro justo, que permita manter o ciclo produtivo.
Vamos ver, minha amiga Olinda, se os crâneos deste país vão perceber que as "engenharias financeiras" não são, não poderão ser a solução para a economia do país e das famílias.

Baila sem peso disse...

Olá meu amigo!
Ainda tenho familiares no campo...
e sim, é uma distância abismal
dos que vivemos na cidade
que até dá p´ra nos sentir mal...
aquela paz renovadora
que vem da frescura da Terra
em nós cai como um sereno sinal...
eu adorei ouvir o Sô Manel!
Como é simples o seu entender
tanto que faz engrandecer
Vida que é pisar o(a terra)chão...
Bem não vou adiantar-me não...
já fui uma criança muito feliz
mas já não tenho avô que o diz...

bem, chega de nostalgia :))
quem sabe...voltarei lá um dia!;)

e adorei a comparação
entre os carros e as pessoas
dei uns sorrisos à maneira :)))
só mêmo tu, amigo Bartolomeu
mas só esqueceste um pormenor
onde fica o inexplicado amor? ;)
ainda que carro agora não tenha
bem lhe conheço a manha
e dos amigos com que se amanha
mas que tenha coração a palpitar?
huumm, serão aqueles beijinhos
que se vêm aí pelos caminhos
autoestradas e afins
quando se juntam carinhosamente
e morrem juntos para o eternamente?
;)

ai, e depois dizes que és tu
que estás parvinho?
ó pa mim...
isto deve ser do soninho...

Pronto já deixei o meu pézinho
(e a mão, e o braço...e o soninho...) vou descansar o meu corpinho!

Voltarei tendo em conta que passo a ler desde o ponto onde hoje fiquei! ;)

e meu beijinho deixei!

Bartolomeu disse...

Olá minha amiga Bailarina!
Mas que belo poema o teu
Que com o meu texto afina
E que tanto gosto me deu!
;)
Recordas comtanta saudade
A tua meninice no campo
Um doce avô e a liberdade
De correr ao sabor do encanto.

Aquilo que o campo nos dá
O sol, a água e o ar
Nenhuma cidade poderá
Dar-nos com a mesma qualidade
É o corre-corre, sei lá...
É a pressa de chegar
Onde chegar, só será
Sempre à mesma cidade.

E assim passamos a vida
Correndo em volta de nós
Sem nunca encontrar a saída
Lembrando sempre os avós.

E o carro, ou... as pessoas
Que semelhança total
Tal como eles, ha-as boas
E outros que são menos mal.

Mas na questão do amor
também se vêem semelhanças
Ha carros que salvam da dor
Os que conduzem como crianças.

;)

ana b. disse...

Caro Bart:

Tem toda a razão, a vida nas cidades não se compara à simplicidade e pureza do campo. Só é pena é estar conspurcada com pessoas que são incapazes de assumirem as suas decisões, de forma frontal e firme. E de não assumirem os compromissos- recordo-lhe que ainda tenho em meu poder, o livro que me pediu para comprar. Não é pelo dinheiro, felizmente que 15 euros não me aquece nem arrefece. É pelo gesto em si:(
Mas se calhar, você não sabe o que isso é...
Isso para rematar que, cada vez mais, acho que há uma certa idealização das pessoas do campo e da sua suposta humanidade.

Bartolomeu disse...

Tens toda a razão ana, existem diferenças muito marcadas entre o campo e a cidade e entre aqueles para quem a amizade simples e desinteressada, tem mais valor que as amizades por interesse, ou, por desinteresse.
Se estas recordada, manifestei-te o meu desagrado pelas atitudes de quem procura pequenos e grandes nada, para se demonstrar superior àqueles com quem convive. Isso vai contra aos meus princípios, os quais não violo em nome de vaidades ou de coisas vãs.
Quanto ao livro, e uma vez que se encontra na tua posse, terei todo o gosto em o receber. No final do mês, quando regressar ao trabalho, estarei disponível para o receber, de preferência enquanto saboreamos um pastel de nata em Belem.
;)

ana b. disse...

Bart:

Recordo-me de me teres falado que andavas a receber uns mails que te desagradavam mas não percebi especificamente o que diziam, muito menos a sua autoria.
De qualquer maneira, isso não justifica o facto de não me teres avisado que não ias ao jantar. Era eu que estava a organizar o jantar, e eu não te mandei nenhum mail desagradável.Sinceramente, acho que merecia um pouco mais de consideração.